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UM ARTISTA DESCONHECIDO

D. VICENTE DE MICOLTA

Ha, de facto, uma dualidade antagonica nas pessoas dotadas de um temperamento artistico, que se retiram a um canto obscuro e restringem o campo de suas luctas ao horizonte medido pelo alcance de sua potencia visual.

Ao lado de um orgulho- orgulho de saber se colloca uma modestia singular, um ingenuo temor de que seu nome se propague, seja conhecido e admirado. O orgulho, neste caso, que se pode chamar orgulho de sabio ou orgulho de artista, longe de ser um defeito, é uma virtude.

Na impossibilidade de serem conhecidos pelos que os cercam, e, revoltados diante das iniquidades que vêm ou que soffrem, recolhem. se a um pequenino sitio, onde suas forças se avolumam, sua enfibratura se enrija e sua mentalidade fortalece.

O sentimento ganha em profundidade o que perde em extensão, escreveu Chateaubriand - numa grande obra reçumando amor e consolação.

D. Vicente José de Micolta, ou melhor o D. Vicente, como era conhecido, foi um homem superiormente versado em todos os ramos dos conhecimentos humanos e um grande artista que fazia saltar do seu cinzel vultos da mais pura correcção esthetica e da sua palheta as mais bellas copias da natureza.

Pena foi que o seu espirito eminentemente religioso fizesse voltar a sua imaginação para os assumptos sacros, genero em que não ė dado ao artista sobresahir, tão explorado tem sido em todos os tempos. Todavia vimos delle um tão perfeito quadro da Mãe de Jesus, que, pelas mais bellas copias que conhecemos, não duvidamos em collocal-o ao lado da famigerada Virgem de Murillo, tão perfeito é o seu acabamento, tão suave e doce e terno é aquelle olhar di

vino que esplende da tela, to puras são as linhas daquellas feições que infundem no nosso intimo um angelico mysticismo, que punge e anceia por um termo desconhecido. Este prim or, entretanto, jaz quasi inapreciado no ignoto de um sitio, onde poucos o vêm e quasininguem o admira e comprehende. Quem sabe si outras que o nosso olhar profano não logrou descobrir andam talvez perdidas ou quiça mesmo innutilizadas pelo tempo ou pelo descapricho dos que a retam g

D. Vicente viveu largos annos no arrais de S. Caetano do Ri beirão Abaixo, municipio de Marianna, idolatrado pela população em peso, que lhe sentiu e chorou a morte, occorrida a 17 de novembro de 1900.

Era hespanhol de nascimento. Veiu ao mundo, ignoramos o anno, em San Fernando, bella cidade do golfo de Cadiz, tendo tido por paes D. José Maria de Micolta e D. Izabel Moreno de Micolta. Era de familia importante, muito achegada á nobreza e como tal recebeu aprimorada educação em muitos ramos de sciencias e bellasartes.

Da sua competencia ficam como attestados: em esculptura, as bellas imagens existentes em S. Caetano e outros logares, como a do Sagrado Coração de Jesus da matriz de Sant'Anna, da cidade de Ferros; em gravura, os bellos trabalhos a buril, em peças de ourivisaria; em pintura, innumeraveis quadros de assumptos biblicos e retratos de admiravel perfeição, desta cando se, de entre outros, um retrato do saudoso prelado D. Antonio Ferreira Viçoso (1) existente no Seminario de Marianna; e, em architectura, o bello templo de puro estylo gothico, edmiravel e admirado, de Nossa Senhora Mãe dos Homens, do Caraça, terminado, si não nos falha a memoria, em 1880, e onde se notam os mais primorosos relevos nos marmores de cores differentes, originarios de Minas, das visinhanças do arraial de Antonio Pereira, proximo de Ouro Preto.

Fez com muita distincção seus estudos na afamada Universidade de Salamanca; mas não temos dades para afirmar si obteve algum grau scientifico, sendo porém, fóra de duvida que o povo o conhecia como engenheiro, e como tal executou, aqui no Brasil, importantes trabalhos, como a estrada de ferro de Macahé, na então provincia do Rio, em companhia do dr. Joseph Lynch seu dedicado amigo.

(1) Este retrato, dizem, foi feito completamente de memoria, tendo D. Vicente visto o bispo apenas uma vez, reconstituindo-lhe a physionomia com a sua admiravel imaginação, algum tempo depois do seu fallecimento.

E' rara a casa em S. Castano em que não se note um traço do seu pincel ora é o quadro de um santo, em que o seu espirito de religioso e de mystico poz o traço pessoal do seu genio, ora o retrato de uma pessoa querida da familia, que elle fixara na tela com a perfeição que caracteriza todas as suas obras, fazendo perdurar o perfil saudoso dos seus amigos, que o tumulo ia tragando implacavelmente.

Não foi sem accidentes a sua vida cheia de trabalhos e de abnegação.

Era official do exercito da sua patria quando agitou a Hespanha a revolução carlista que terminou em 1870, sendo vencida a idea dos partidarios de D. Carlos de Bourbon.

Enthusiasta que era pela causa do rei, abraçou o partido dos insurrectos, batendo se com denodo em varios encontros, elevado a uma alta patente pelo seu valor, pelos seus conhecimentos e pela sua nobreza.

Mas os triumphs da revolução foram ephemeros. A guerra civil que ensanguentou os campos da patria, que desolou e enluctou as familias, ia terminar pelo triumpho do governo constituido. O batalhão de D. Vicente de Micolta foi batido, destroçado depois de porflada luta, e elle, perseguido, transpoz as fronteiras, refugiando-se em Portugal, foragido.

D Portugal, vendo completamente perdidas as esperanças da revolução, passou ao Rio de Janeiro, onde ainda foi visto com um aplomb verdadeiramente castelhano, ostentar o seu bello uniforme de official carlista.

Desgostos intimos e um revez de familia, pois era casado em San Fernando com D. Maria Dolores do Valle Micolta, o dissuadiram de voltar á patria e passou se á Minas, indo residir em Marianna, onde, ainda numa reminiscencia do seu passado, trocara o uniforme militar pela sobrecasaca fina e luvas brancas.

Foi ahi que se esfolharam as suas derradeiras illusões, que lhe morreram as ambições, sem, comtudo, lhe chegarem ao espirito o desfalecimento e o acobardamento diante da lucta pela existencia.

Estava sem recursos e seus conhecimentos de bellas-artes lhe forneceram um meio de subsistencia: fez-se esculptor e pintor.

Talhou imagens de santos, unico producto do seu cinzel ¡vendăvel naquelle meio, em que outras obras, em outro genero, seriam desdenhadas e incomprehendidas, desenhou retratos e quadros das Escripturas, assumpto para o qual se voltava o seu espirito desilludido das cousas terrenas.

No interesse de se manter passou a residir no arraial de S. Caetano do Ribeirão Abaixo, velho povoado originado de um descoberto, á margem do Ribeirão do Carmo e theatro de acção do genio superior

de Salvador Fernandes, uma das mais bellas personificações do typo de bandeirante.

Ahi ergueu definitivamente o seu lar, esculpturando imagens e desenhando quadros, obstinadamente subtrahindo-se a toda e qualquer admiração que se lhe podesse tributar.

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De S. Caetano poucas vezes arredava, tendo sahido para o Ca raça em cuja capella trabalhou e cujas obras dirigiu e depois para Macahé em companhia do D. Joseph Lynch, onde se demorou algum tempo, voltando possuidor de uma quantia capaz de pol-o ao abrigo das vicissitudes futuras.

Mas, apesar disso, os habitos de vida não se modificaram. O mesmo amor ao trabalho, o mesmo proposito de levar uma vida ignorada, a despeito da sua notavel illustração. No havia positivamente uma indagação a que elle não ministrasse a mais perfeita e cabal explicação, em provincias do saber perfeitamente distinctas, como da anatomia á mathematica, da astronomia a pintura; mas não havia tambem maior desdem em manifestar o thesouro do seu saber, esquivando se com um mentido Não sei muito peculiar aos seus labios.

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Como um caridoso em extremo, sabio, religioso a mystico passou a sua vida em lucta, em trabalho o na beneficencia dos ne cessitados.

Era um encyclopedico na mais rigorosa accepção do termo, nos affirmou um seu amigo, pessoa de grande intimidade sua. Foi tudo militar, engenheiro, architecto, esculptor, pintor, ourives, marcineiro, etc. Bello exemplo de um espirito que a tudo se

amolda.

Qualquer dos seus trabalhos, feitos com uma notavel perfeição, basta para lhe fazer lembrado o nome caso se possa esquecer a gran deza da alma e o alto grau das suas virtudes, nos logares em que viveu e por onde perlustrou.

Foi realmente lamentavel que o infortunio tivesse tão implacavelmente pesado sobre os hombros de tal homem, capaz de adquirir o maior lustre para o seu nome.

Suas ambicões se desvaneceram com o fracasso da revolução em cujo exito confiava e o seu coração de bom, onde enthesourava o affacto da familia, tambem foi brut Inente apunhala to por uma desgraça imperdoavel.

E' o unico facto que achamos para explicar a existencia de tio fino espirito em tão humilde e ignorado logar, vivendo como um rustico, abominando a fama e o renome, procurando passar nas recordações preteritas a esponja do esquecimento embebida no fel que The amargurava a existencia.

A religião

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quem sabe?- foi o amparo que o sustentou na vereda da vida. No ambiente de sua morada, em S. Caetano ainda

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